sexta-feira, 15 de maio de 2009

De Ricardo para Ricardo. →Deslizando no dorso do tubarão azul...


... memórias do menino sujo e maltrapilho...
Suas maiores paixões: luvas de goleiro. De adulto. Ficavam enormes em seus dedos delgados. Uma BMX. A "flecha de prata". Primeiro presente usado que ganharia de seus então primos riquinhos. A camisa com o número 10. O número do galinho. Botões de acrílico. Vermelhos. Sua cor favorita. Com os escudos do time da Gávea. Seu esquadrão imbatível. E um tubarão. Azul. Com um desenho indecifrável no shape.Por que diabos essa criança parecia sempre tão feliz? Era digno de pena. Um cabrunco de um menino feio. Esquálido. Porém, ostentando uma "barriguinha de vermes". Deveria estar cheio de lombrigas. Sempre descalço. Sempre sem camisa. Pentear cabelo? Para que? Cabelo. Aquilo parecia mais um arbusto. Acho que até espinhos cresciam junto a seus cachos. As meninas nem se atreviam a chegar perto dele. Não sei como não tinha apelidos como cascão, ou pigpen. Os adultos achavam que ele era largado. Que os pais não ligavam para ele. Ninguém nunca percebeu. Ele era da rua. Na rua, era criança. Era livre. Ora em cima da BMX. Ora fazendo raiva nos meninos mais velhos, jogando futebol. Ora deslizando pelo asfalto, tal como surfista havaiano desliza na onda, em cima de seu tubarão a
zul.
Dentro de casa era outra coisa. Como se atravessasse um portal. da porta para a rua, era a criança, feliz e inocente. Da porta para dentro, era uma mente precocemente adulta, presa no copo de um garoto de sete para oito anos. Ouvia música deprê. Sofria pela menina do colégio, que não queria namorá-lo. Identificava-se com o gonzo. O que era o Gonzo? Todos os outros eram aparentemente animais conhecidos. O que era o Gonzo? Era por isso que a Pig gostava do Caco? Por ele ser um sapo, e o Gonzo um ser esquisito. He. Ele amava os momentos em que o Gonzo, tomado de boa autoestima definia-se "esquisito de nariz azul", enquanto espécie. O Gonzo era unicamente especial. Dentro de casa, devorava livros. Entendia todos os filmes.Ninguém se deu conta disso. Ele precisava da rua. Precisava correr. Os pés descalços. A pele tocando o chão. Tocando o mundo à sua volta. Pertencia a ele. Ele pertencia àquilo tudo. Assim era tão mais intenso. Os colegas também não entendiam. Estavam sempre limpinhos. Calçados. Trancafiados em camisetas e cuecas. Ele não. Só trajava um calção. Durante toda a sua infância, acreditava que apenas um calção era necessário para sua sobrevivência. Os outros se julgavam melhores. Melhores em que? Maiores possibilidades de se tornarem mais bem sucedidos? O sucesso só depende de vontade. De esforço. Traçar o objetivo. Mirar e atirar. Atirar todas as flechas, até acertar na mosca. Naqueles dias, o objetivo dele era ser criança. E ele se jogou de cabeça na infância. Ora montado na BMX. Ora correndo descalço. Ora defendendo pênaltis. Ora deslizando descompromissadamente no dorso de seu tão querido tubarão azul.Hoje, ele sente falta daqueles dias. Dias que pareciam durar mais tempo. Dias mais bem aproveitados. Hoje, desaprendeu a andar descalço. Não realizou seus sonhos de menino. Ser piloto da Mclaren. Ser jogador do Flamengo. Ser guitarrista de banda de rock. Não é médico. Tampouco advogado, ou outra dessas "profissões dos sonhos". Ainda não pode ser considerado um homem de sucesso. Mas aprendeu muitas coisas. Aprendeu a sonhar novos sonhos. Traça o objetivo. E dispara. E não para. Não para antes de acertar. E se, mesmo insistindo tanto, não acerta, desenvolve o plano b, plano c. Quantos planos alternativos forem precisos. Descobriu que não aguenta ficar por muito tempo encarcerado em tern
o e gravata. Um mês engravatado foi o suficiente, e pediu demissão. Ele sabe que pode tomar a si mesmo como exemplo. Não é preciso seguir os parâmetros da sociedade para alcançar o sucesso. É possível vencer calçando tênis. É possível vencer trajando bermuda. Sem carro zero. Sem embalagem que te faça parecer um produto caro. Basta ser honesto. Verdadeiro para consigo. E mergulhar vertiginosamente em seus desejos. Sem medo de se espatifar. Ele sabe que dor é um risco. É consequência. Mas não é o fim. Apenas uma breve pausa. Reflexão. Recomeço. E é isso que ele vai ensinar a seus filhos. Que se sujar é ainda mais divertido que no comercial de sabão em pó. Que o mundo pertence a eles. Que eles pertencem àquilo tudo.Do que ele sente mais falta? De suavemente deslizar, apoiado em seu estimado tubarão azul, que nem existe mais. Pensando bem... acho que ele precisa comprar um skate novo.


Este texto maravilhoso foi tirado do blog de meu grande amigo Ricardo Rodriques (Xará)



Nenhum comentário: